No caminho de regresso à cidade, elaboramos um plano de exploração ao centro da ilha, no qual assinalamos como pontos obrigatórios: a Roça Monte Café, a 670 metros de altitude, com terrenos bastante propícios para a cultura de café arábica, e a Nova Moca, uma dependência que cultiva cacau orgânico utilizado na produção dos chocolates Claudio Corallo; a Cascata de São Nicolau; o Jardim Botânico Bom Sucesso, de onde partiriamos para um trilho até à Lagoa Amélia; e um repasto na Roça da Saudade, onde Almada Negreiros nasceu em 1893.
Lamentamos não ter mais alguns dias para a ascenção do Pico de São Tomé e para a visita à Roça Bombaim situada no limite do Parque Ôbo, ou não tivessemos sido traídos pelas chuvas e o acesso estivesse condicionado… Mas logo nos animamos ao pensar no que talvez Almada diria, ficando nós, pelo menos, com mais um par de motivos para regressar.
“BASTA PUM BASTA! E nisto crio na minha mente uma espécie de Manifesto Anti-Roteiros: Que se lixe o plano. Vejamos menos e vivamos mais! Morram os postais, vivam as histórias. PIM!”
Assim foi aquele dia, passado a desfrutar do silêncio daquelas roças, da melodia das águas da cascata, da oportunidade de descobrir uma floresta primária densa, da cratera de um vulcão extinto onde se pode avistar uma grande diversidade de aves endémicas e até pequenos macacos, e das paisagens soberbas da ilha…
Confesso que chegado o final do dia, senti um especial entusiamo ao aproximar-me de um local que tanto queria conhecer, a Casa Museu Almada Negreiros. Acaso ou não, gosto do facto de partilhar a data de nascimento com este fabuloso homem das artes, acalentando a tola e ingénua ideia de que, talvez um dia, eu possa vir a ser bafejada por uma milésima parte da sua irrevência e genialidade, fruto da serendipidade do universo. Perdoem-me a ousadia!
“Almada foi um dos mais talentosos artistas portugueses e esteve na génese dos movimentos modernista e futurista, com a sua personalidade aguerrida, polémica e indomável.”
Dedicou-se a inúmeras áreas como a poesia, o teatro, as artes plásticas e a dança, ganhando a fama, conforme espelhado na fantástica exposição organizada pela Gulbenkian e patente em Lisboa até ao passado mês de junho, de omnívoro das artes, ou não tivesse desejado come-las a todas. E mais uma vez, acaso ou não, encontra o fim 77 anos depois, no mesmo quarto que o seu grande amigo Fernando Pessoa.
A caminho da Roça Saudade o ar fica mais fresco e a vegetação mais densa. Joaquim Victor nasceu naquele mesmo local, sendo a sua família dona de parte do terreno, onde se encontravam as ruínas da casa de três andares, colunas e alpendre, que ele descobriu ter sido a primeira do artista. Desde o fim de 2014 que ali funciona a Casa Almada Negreiros, um museu que há-de crescer, assim alimenta a esperança.
Após mostrar entusiasticamente o espaço, onde encontramos a certidão de nascimento do Mestre Almada, assim chamado na altura em que colaborava na Revista Orpheu, ou as réplicas de quadros e desenhos seus, Joaquim convidou-nos a degustar um jantar fantástico que me soube a versos de amor rebelde. Em verdade, aquela refeição despertou boas memórias de sabores já apreciados na ilha, em especial, na Roça de São João dos Angolares, como a omelete de micocó – afrodisíaca, insistiram sempre os anfitriões –, ou o fura-cueca, nome do molho picante.
Um jantar destes merecia um café ou até uma bebida forte no Centro CACAU – Casa das Artes, Criação, Ambiente e Utopias, na cidade de São Tomé, conhecido pelas suas exposições em permanência, sessões de cinema, espectáculos ou venda de artesanato. Mal me sentei, recuei até à segunda década do século XX, com o Viajante Ilustrador e o querido amigo Tiago Páscoa. Arrisco afirmar que formamos, humildemente, uma tertúlia de alianças e quimeras…