Já a caminho da cidade de São Tomé, a rádio local ajudava-nos a esquecer a iminência da despedida, ou não fosse ali tudo anunciado, desde a (peculiar) necrologia, às (longas) advertências administrativas, até às (“exorcizantes”) sessões da Igreja Universal de Deus.
Aquele dia foi especial. Conquistamos um cantinho escondido da ilha apelidado de Colónia Açoriana, que nos fez sentir, estranhamente, em casa. Aquela aldeia sita no distrito de Cantagalo e próxima das localidades de Santa Cruz dos Argolares, São Lourenço, Amparo, Santa Cecília e Micondó foi, outrora, propriedade dos irmãos Domingos Machado da Silveira e Paulo, e João Jorge da Silveira e Paulo, naturais dos Açores. Embora nascidos numa modesta família de pedreiros e trabalhadores agrícolas na freguesia de Santo Amaro do Pico, em 1881, João Jorge decidiu ir para Lisboa estudar. Contudo, no ano imediato, partiu para São Tomé, onde o seu irmão mais velho, Domingos, já se havia fixado e era proprietário da roça Colónia Açoriana, na qual lhe deu sociedade.
A Colónia Açoriana foi rica na produção de cacau, tornando-se, sob a gestão de João Jorge uma referência na ilha. À semelhança das grandes roças, a Colónia chegou a possuir um pequeno caminho-de-ferro, com um par de quilómetros, utilizado na condução do cacau seco para embarque. João Jorge regressou aos Açores no final daquele século e fixou-se em Angra do Heroísmo. Exerceu o cargo de Presidente da Junta Geral do Distrito de Angra do Heroísmo, entre 1905 e 1907, e entre 1908 e 1910. Adquiriu o Solar dos Noronhas, junto à Igreja da Conceição de Angra, onde construiu um imponente palacete (atualmente, designado como Palácio Silveira e Paulo), um dos imóveis mais marcantes da cidade.
“Hoje, aquele ponto do mapa é uma memória quase esquecida dos portugueses, e em especial, dos açorianos.”
Ali vivem cerca de 510 pessoas, que desenvolvem atividade baseada em agricultura e na produção de cacau, sendo que a maioria vive numa base de autossubsistência. O secretário da Escola Primária da Colónia de nome João Maria explicou-nos ainda que acolhia uma média de 280 crianças, entre os 6 e os 14 anos de idade, provenientes da Roça Colónia Açoriana, Santa Cecília, Roça Caridade, Amparo e São Lourenço, orientados por 10 professores. Muitos foram os desabafos por ele deixados, desde a ausência de infraestruturas adequadas à insuficiência de material escolar, chegando ao ponto de, para imprimir documentos, ver-se obrigado a percorrer cerca de 70 quilómetros, ou se preferirem, duas horas de viagem (ida e volta).
Debruçada numa mesa de madeira gasta pelos milhares de horas de aprendizagem e utopia, exultei a coragem daquela gente, que faz do verbo educar uma missão, recordando, de imediato, a conversa de alguns dias atrás com o inspirador Cristóvão Silva, da ilha de Príncipe. Mais do que ensinar, aqueles professores e aquelas professoras, tentam resistir, de modo firme e até ingénuo, ao caos social manifesto (e ainda mais latente) de uma sociedade consumida pela desmoralização de valores, que transborda fronteiras.
No regresso até à estrada principal, vários miúdos gritavam-nos entusiasticamente “Branco, doce!”. Independentemente de tal gesto se dever ao facto de, muitas vezes, estranhos lhes deixarem guloseimas ou outras ofertas (realidade lamentável, uma vez que nada lhes acrescenta, bem pelo contrário, promove uma espécie de mendicidade infantil e coloca em risco a saúde dentária), aquele momento causou em mim uma sensação de revelação.
“O arquipélago de São Tomé e Príncipe abriu a minha gaveta de infância, assim como uma imensa saudade dela.”
Após aquelas semanas, precisei de ver e abraçar retratos de gente presente e ausente; de ouvir vozes de todos os tempos; de sentir ora o vazio, ora o todo de alguns “adeus” e de outros “olá”; de reler livros e sacudir o pó de vinyl que tanto já me fizeram acreditar; de recordar sabores familiares; de me demorar em locais (só) meus…
She’s got a smile that it seems to me/
Reminds me of childhood memories /
Where everything/
Was as fresh as the bright blue sky … Now and then when I see her face /
She takes me away to that special place /
And if I stare too long/
I’d probably break down and cry… Oh, oh, oh/
Sweet child o’ mine/ Oh, oh, oh, oh/
Sweet love of mine…
[Guns N’ Roses]